Desigual Justiça brasileira

Desigual Justiça brasileira

A desigual Justiça brasileira: uma análise de dados e estratégias de mudança

Foto: Carlos Moura/SCO/STF

Ao se tratar da prisão de uma pessoa no Brasil, alguns fatos estilizados são constantes. Um deles é que, se o julgado for rico, haverá mais recursos que os advogados poderão usar para protelar a prisão. O acesso à Justiça no país é um forte elemento gerador de desigualdades em qualquer país e, no mês em que Rafael Braga foi preso, é mandatório discutir o tema. Isso se torna especialmente relevante no país com o judiciário mais consome recursos como proporção do PIB – 1,3% – e onde haver problemas nesse sentido seria extremamente grave, seja pelo aspecto do gasto público, seja pela ineficiência.

Infelizmente, conferindo os dados sabemos que a situação é de fato grave. Com todo o gasto público, o Brasil conseguiu figurar apenas em 52º lugar no ranking de eficiência e poder da lei organizado pela World Justice Project[1] em 2016. Esse ranking, que conta com 113 países, analisa diversos aspectos da relação entre a lei, governos e cidadãos e nos permite ver que o Brasil, é mediano – e ineficiente – nesse sentido. Entretanto, dos aspectos analisados, a variável “discriminação no sistema criminal” indicava o Brasil como o 94º pior dentre 101 países em 2014 e chama atenção por ser particularmente gritante.

Esse resultado por si é estarrecedor, mas muitos podem argumentar que o Brasil é um caso relativamente único. Temos uma grande população – o que gera maior número de conflitos – e maior diversidade étnica – o que traz maior potencial para conflitos e preconceitos segundo a literatura de psicologia[2], economia[3] e ciência política[4]. Assim, poderia se cogitar que certas questões não-políticas afetam a questão.

Nesse breve texto, tento mostrar que com todos esses fatores considerados o Brasil continua particularmente ruim e ineficaz. Usando ferramental de econometria – regressão linear – filtro o impacto das variáveis etnicidade e população na discriminação do ranking. O método permite eliminar fatores sistemáticos do ranking anteriormente considerado e é um procedimento comumente usado, por exemplo, em finanças e outras áreas científicas. Os dados usados estão na base “Quality of Government 2017”[5], da universidade de Gotemburgo. Controlando para esses pontos levantados[i] e considerando apenas os fatores não-considerados ao classificar os países, temos que o Brasil permanece na 76ª posição, num ranking de 100 países (perdemos um, a Sérvia, no processo de filtragem).

Como podemos ver no ranking disponibilizado nesse artigo, o Brasil continua sendo um país que a justiça é discriminatória, figurando entre os 25% piores.

Há a confirmação de que o governo brasileiro é incrivelmente ineficiente em garantir a justiça de maneira igualitária. Isso viola princípios básicos que todo governo democrático deveria garantir.

O Brasil fica atrás até mesmo da Rússia de Putin e do Paquistão, sendo esse um grave problema. Em um relatório publicado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, é verificado que audiências de custódia liberam 32% mais vezes brancos que negros[6].

Algum observador mais atento, entretanto, poderia argumentar que nem toda culpa é de instituições governamentais. Por exemplo, nossa imprensa deveria cobrir as questões penais dos mais pobres, mas muitas vezes as ignora. Para contornar mais esse problema, filtro a variável original para as questões anteriores e também para o índice de liberdade de imprensa organizado pela Freedom House. O Brasil, país de imprensa relativamente livre, cai para a vergonhosa 88ª posição. Isso significa que ou os brasileiros não se importam de noticiar essas questões – configurando assim uma difícil situação estrutural – ou que o governo é pouco atento à opinião pública na questão penal.

Agora, saindo dos dados e indo para uma interpretação mais ampla, me parece ser o caso de ambos fatores – governo e população – interagirem. Há segmentos da sociedade que tendem a ver cadeia como solução para tudo, seja na direita conservadora – com os jargões “bandido bom é bandido morto” ou “direitos humanos para humanos direitos” ou na esquerda, onde Maria Lúcia Karam identificou veia punitivista mesmo entre quadros estudados[7] – e esses setores suportam o governo e seus preconceitos.

O que faria nosso ambiente institucional penal melhorar? Uma perspectiva puramente liberal sobre o assunto é interessante, porém insuficiente. Por exemplo, é fato patente que retirar as justificativas do Estado para punir minorias aumenta o custo de fazê-lo, entretanto isso não é uma solução, afinal faltaria saber como as justificativas seriam retiradas. Esperar essa solução de um congresso que, entre os governos Itamar e Dilma II está ou à direita ou alinhado ao presidente[8], é excesso de pensamento positivo; esperar do executivo é ignorar como coalizões se formam.

A disparidade ideológica entre presidente e congresso é exibida no gráfico abaixo. Uma potencial solução vem da própria estrutura jurídica do Brasil: o STF tem capitaneado pautas sociais e isso traz maior pacificação a questões relativas a drogas e outros crimes sem vítimas. Infelizmente, é sabido que o STF legislar não é exatamente ótimo por se tratar de um poder relativamente não controlado; um conjunto de ministros conservadores pode reinterpretar questões penais de maneira retrógrada.

Nessa figura observamos a disparidade ideológica entre presidente e congresso. Quanto menor o valor, mais a esquerda o partido do presidente está do congresso. Essa métrica foi calculada pelos politólogos Carlos Pereira, Marcus Melo e Frederico Bertholini [8].

A única solução que creio plausível é uma mudança na estratégia da sociedade civil organizada. O diálogo sobre encarceramento em massa, atualmente monopólio da esquerda, deve ser na direção de menor polarização. A literatura em psicologia social mostra que a persuasão é sujeita a princípios[9] e dois deles são importantes para o atual caso: reciprocidade e autoridade.

 

É normal a gente aceitar alguma proposta em troca de algo que nos foi dado. Para as vítimas de violência, demonstrar solidariedade é um gesto importante, assim como não censurar mesmo que a reação delas seja punitivista. A autoridade vem após esse primeiro gesto: após admitir que o problema da violência é sério, é desejável que uma pessoa com autoridade diga que o punitivismo não é a solução.

Nessa perspectiva, associações como a LEAP se fazem fundamentais para o debate público. Creio que a sociedade civil pode mudar o jogo do punitivismo por meio dessa estratégia, sendo ela a única válida.

Em resumo, os rankings disponibilizados nessa matéria procuram trazer luz para um problema grave no Brasil: nossa justiça é desigual e pune diferentemente as pessoas.

Casos emblema como o de Rafael Braga podem ser exemplos que, somados, configuram um sistema caro e discriminatório, conforme evidenciado pelos dados. Fica claro que não podemos ser reféns das decisões políticas institucionais e é hora de a sociedade civil agir. Muito cuidado é necessário para essa resolução não cair no vácuo das propostas no molde de “vamos fazer um pacto nacional”, que nunca ocorrem.

Os movimentos sociais precisam entender que o cidadão vítima da violência é de fato vítima e um suporte fundamental para melhores políticas. Acusar alguém cansado de assaltos de reacionário é contrassenso, sendo necessária melhor comunicação para a mudança de crenças desejada. Sem isso, infelizmente, a desigualdade na Justiça Brasileira dificilmente será reduzida.

Jamil Civitarese é mestre em Administração pela Fundação Getúlio Vargas, com ênfase em comportamento e tomada de decisão, e economista formado pelo Ibmec-RJ. Possui artigos em periódicos e conferências internacionais em finanças, redes sociais e ciências políticas. Atualmente trabalha com Instituições, Políticas e Governo na Fundação Getúlio Vargas e presta consultoria em finanças, macroeconomia e política.


[1] Agrast, M. D., Botero, J. C., Martinez, J., Ponce, A., & Pratt, C. (n.d.). The World Justice Project: Rule of Law Index 2015. World Justice Project.

[2] Stanley, D. A., Sokol-Hessner, P., Banaji, M. R., & Phelps, E. A. (2011). Implicit race attitudes predict trustworthiness judgments and economic trust decisions. Proceedings of the National Academy of Sciences, 108(19), 7710-7715.

[3] DiPasquale, D., & Glaeser, E. L. (1998). The Los Angeles riot and the economics of urban unrest. Journal of Urban Economics, 43(1), 52-78.

[4] Montalvo, J. G., & Reynal-Querol, M. (2005). Ethnic Polarization, Potential Conflict, and Civil Wars. The American Economic Review, 95(3), 796-816.

[5] Teorell, J., Charron, N., Samanni, M., Holmberg, S., & Rothstein, B. (2011). The quality of government dataset. The Quality of Government Institute University of Göteborg. Göteborg.

[6] Haber, C. D., & Cardoso, J. D. (n.d.). Relatório sobre o perfil dos réus atendidos nas audiências de custódia (Rep. No. 3). Retrieved http://www.portaldpge.rj.gov.br/Portal/sarova/imagem-dpge/public/arquivos/relatorio_audiencia_custodia.pdf

[7] Karam, M. (2015, March 06). A Esquerda Punitiva. Retrieved May 04, 2017, from http://emporiododireito.com.br/a-esquerda-punitiva-por-maria-lucia-karam/

[8] Pereira, C., Melo, M., & Bertholini,. F. (2017) Coalition Management Under Divided/Unified Government. Working Paper.

[9] Cialdini, R. B (1993). Influence: The Psychology Of Persuasion. Harper Business

 

http://justificando.cartacapital.com.br/2017/05/15/desigual-justica-brasileira-uma-analise-de-dados-e-estrategias-de-mudanca/ 




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