Aula de história

Aula de história

Os perigos da aula de história

7 de junho de 2016

Vivemos tempos difíceis para educadores e educadoras, especialmente nas áreas de ciências humanas e sociais. Nossas atividades em sala de aula (em especial, a aula de história), o currículo que adotamos e até a nossa postura para além dos nossos espaços de trabalho têm passado a ser constantemente alvos de vigilância e questionamento.

Isto a princípio não é ruim, muito pelo contrário. A sala de aula e o currículo são partes essenciais de qualquer sociedade que as possua e devem ser objeto de discussão pública. Professores, estudantes, pais, todas e todos devem discutir e pensar a educação: qual educação desejamos, para que a desejamos, como coloca-la em prática.

Doutrinação Ideológica?

De fato, há uma discussão hoje no campo da educação que diz que a ênfase que temos dedicado nas últimas duas décadas à questão do “ensino” e da “aprendizagem” teve como efeito colateral deixar de lado o debate sobre a educação como um processo mais amplo de manutenção e reprodução das sociedades e o que definiria, portanto, uma “boa educação”. Ensino e aprendizagem, obviamente, são temas fundamentais: pensar o lado da estudante na sala de aula, como ela atribui sentido ao que tentamos ensinar ali, enfim, como construímos conhecimento na escola.

No entanto, esta discussão acaba acontecendo sempre em uma escala individual e simplificada – já que, para esta visão, ensino e aprendizagem se referem às relações entre duas pessoas somente: professor e estudante – e, assim, a educação como um processo complexo e multifacetado, que exige como parte da reflexão sobre si deixar muito claro de onde partimos e aonde queremos chegar como agentes coletivos, tem perdido espaço. Uma situação onde a gente pode ver essa ausência de discussão é quando a naturalização de certos termos os leva a serem usados sem a preocupação de explicitar o seu sentido.

Por exemplo, se pararmos para pensar, “aprendizagem” não é algo óbvio – na verdade é um termo que traz consigo uma conotação qualitativa que raramente é evidenciada: só se considera que algo foi aprendido quando este “algo” é um conteúdo que é considerado importante, e daí acabamos discutindo pouco quais conhecimentos consideramos importantes, já que o termo “aprendizagem” é muito mais usado como algo simples e dado do que algo a ser construído e questionado o tempo todo. Um exemplo de uma consequência desta ausência que vivenciamos atualmente: os ataques incessantes à presença de questões de gênero e sexualidade nas escolas.

A gente tem que parar pra pensar nisso pra ver que o currículo que estudamos não vem pronto e não é definitivo. Que quando lemos documentos oficiais ou programas de fundações privadas que estão ajudando a construir a Base Nacional Comum Curricular, como o Todos Pela Educação, por exemplo, e vemos ali a educação resumida a “direitos de aprendizagem dos alunos”. Isso, muitas vezes, não gera as perguntas que deveria, isto é, direito de ensinar e de aprender o que? Por que? Pra quê? Para quem?

O lugar da aula de história

Quando eu estava terminando o ensino médio na rede estadual do Rio de Janeiro, começavam a aumentar os tempos de matemática para aumentar o conteúdo de matemática financeira. Quando eu entrei no ensino médio, em 2008, diminuíam os tempos de literatura pela metade (de 140 para 50 minutos por semana). No meu segundo ano, se não me engano, aconteceu o mesmo com as matérias de sociologia e filosofia – o que as ocupações de escolas aqui no Rio acabou de conseguir reverter (parabéns aos estudantes!).

Nas aulas de física nunca cheguei perto da física moderna, que começa com mecânica quântica e relativismo, ficando somente na física clássica newtoniana. Talvez por isso eu só tenha descoberto meu interesse pela física teórica, que tento estudar como leiga lendo livros de vulgarização científica como os de Stephen Hawking [1] e assistindo a nova série Cosmos [2] apresentada pelo Neil DeGrasse Tyson, que adoro ficção científica na faculdade.

Que lugar o ensino de história ocupa nesse cenário? Como nós professoras/es estamos acostumados a ouvir, é usual acharem que somos todos “comunistas” e mais recentemente “doutrinadores”. Coloquei comunistas entre aspas porque hoje em dia a palavra assumiu novamente a conotação que tinha no período da Guerra Fria, como se vivêssemos todos num episódio longo demais de Além da Imaginação [3].

Ela critica em vários episódios a histeria e paranoia americanas em torno de “comunistas”. Recomendo toda a série, mas para começar são legais os episódios “Where is everybody?“, “Will the real martian please stand up“, “The after hours“, “Monsters are due on Maple Street“)). Assim,  “comunista” passou novamente a incorporar um julgamento moral sobre a pessoa que assim se denomina ou é assim rotulada, ao invés de ser somente uma identificação da visão política do indivíduo em questão. Mas de onde vêm estes rótulos tão frequentes?

Desnaturalizar é preciso

Pelas salas de aulas que passei ao longo da vida, como estudante no ensino médio público, depois na faculdade pública, e de volta à escola pública dando aulas durante o estágio pra licenciatura, o que me parece é que chama a atenção a capacidade dos professores de história – das ciências humanas no geral, na verdade – de desnaturalizar processos sociais, o que nos faz sempre questionar e destacar que outros modos de ser e de ver o mundo são sempre possíveis. Muitas vezes difíceis, claro, mas não impossíveis. Isso é ser “doutrinador” ou “comunista” (no sentido paranoico do termo)? Claro que não!

As ciências humanas são, a meu ver, inextricavelmente instigadoras de questionamentos sobre o passado, o presente e o futuro. A história, ao tratar do que mulheres e homens fizeram em uma perspectiva temporal recusa por sua própria natureza qualquer coisa dada a priori. Um famoso historiador alemão [4] nos conta que o nosso conceito de “história” (que podemos, como disse o famoso historiador francês Marc Bloch enquanto estava em uma prisão nazista, resumir em: a ação dos homens no tempo) é fruto de um momento específico: o fim do século XVIII, com as revoluções burguesas, que mostraram empiricamente que são os homens (e mulheres! embora a nossa contribuição à história só tenha sido lembrada por historiadores/as na segunda metade do século XX devido a movimentos específicos dentro da historiografia) que fazem a história e que mudanças radicais são possíveis, tornando obsoletas as definições de história como, por exemplo, uma realização de desejos divinos ou de qualquer destino pré-concebido. Ordem e progresso

Não é à toa que é desta época aqui que surge também a ideia de progresso e aquele otimismo que geralmente comentamos ao estudar a revolução tecno-científica (ou segunda revolução industrial): estamos caminhando para um mundo melhor, mais racional e confortável. Nós fazemos nosso próprio destino, nossa própria história.

É por isto que nos consideram “doutrinadores”, eu acho: porque pela natureza de nosso próprio conhecimento vislumbramos sempre as possibilidades e necessidades de mudança; nós olhamos o mundo e ao vermos seus problemas pensamos que eles poderiam ser superados. Quando vemos uma garota ser estuprada por trinta homens, que divulgam sua imagem rindo do crime, e sabemos que estes homens provavelmente já foram alunos, nossa responsabilidade pela segurança da próxima geração de meninas e mulheres passa a abranger a necessidade de discutir gênero na escola, porque pelo nosso conhecimento acumulado sabemos que mudanças são possíveis.

Muito mais em jogo…

No entanto, há de se admitir que estamos sendo acusados de muito mais do que “simples” “doutrinadores”. Pra começar estamos em estado constante de alerta, tendo que nos defender de projetos de lei que irão atacar a essência de nossa disciplina e nos criminalizar. Nossos passos estão sendo vigiados mesmo fora do local de trabalho, em nossas redes sociais, já que o movimento Escola sem Partido instaurou um sistema de vigia e denúncias constantes de postagens de professores em suas redes[5].

É aqui que eu acho que a questão da aprendizagem tem que ser também levada em conta. Ouvimos falar sobre onda conservadora, ascensão do conservadorismo, backlash, ódio renovado pelas minorias, etc, e isso tudo se volta contra nós por causa do que expliquei nos últimos parágrafos, mas acho que há algumas especificidades no ataque que a educação como um todo, professores de humanas mais fortemente, sofre neste momento. Este adendo é a questão do “direito à aprendizagem”, cujos problemas que eu apontei têm sido intensamente capitalizados por movimentos como o escola sem partido, misóginos que falam da nocividade de uma tal “ideologia de gênero” e afins. Estes agentes se aproveitam do caráter qualitativo escondido do termo “aprendizagem” para dizer que professores “doutrinadores” estão se furtando a fazer seu trabalho quando falam de política, gênero e outras questões socialmente vivas em sala de aula, e que assim estão violando o “direito de aprender” [6] dos estudantes não ensinando os conteúdos “certos”(como se existisse um conteúdo enlatado que chega na escola vindo de outro mundo) e/ou “colocando ideologia onde não tem”.

Ideologia é um termo polêmico, com o sentido muito disputado na literatura acadêmica. De modo geral e menos específico ele é utilizado com o sentido de “conjunto de ideias e visão de mundo” de um indivíduo, ente público, privado, etc. Oras, seguindo esse sentido básico do termo, quem é que não tem ideologia? Todos nós agimos e pensamos segundo um conjunto de ideias, afinal é isto que nos define como diferentes de animais: somos seres sociais (vivemos juntos) e políticos (agimos juntos), como disse Hannah Arendt [7].

A história é uma ciência dos homens e mulheres no tempo, feita por homens e mulheres no tempo. Ela existe e se faz simultaneamente a novos acontecimentos, revoluções, revoltas, rebeliões, repressões, protestos, greves, movimentos, e muito mais. E também é permeada por eles.

Só recentemente, por exemplo, começou a se pensar as mulheres na história e a história das mulheres: mais ou menos dos anos 60 pra frente, na mesma época em que também começou a se fazer a “história vista de baixo”, aquela feita por personagens que não foram tipicamente “importantes” nem quando estavam vivos. Só no início do século XX que começamos a pensar que havia mais fontes e documentos para estudar história além daquela documentação produzida pelas burocracias e por grandes homens políticos do passado – imaginem isso! Uma historiografia que não usava literatura ou panfletos políticos, dentre vários outros exemplos, pra se olhar o passado!

Estudar e ensinar história implicam em pensar e articular presente, passado e futuro. Estudamos o passado ensejados por perguntas atuais que para respondermos exigem que tenhamos um futuro em mente a ser alcançado. E tudo isto em uma sociedade viva, sempre em mudança, sempre produzindo mais perguntas e mais conflitos. E nós, professores, ao trabalhar com uma nova geração que ainda é meio novata neste tempo mas que já é parte dele, temos o dever de explicitar tudo isto com nossos estudantes. Então, se ser “doutrinadora” é agir de acordo com a minha responsabilidade e com a natureza da minha própria disciplina, é… Talvez eu seja…

Renata Aquino

Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), integrante do Movimento dos Professores contra o Escola sem Partido, feminista.

 

 

Pra saber mais

1.

HAWKING, Stephen. O universo numa casca de noz. Intrínseca. 2016

2.

Remake da série Cosmos clássica de 1980 apresentada por Carl Sagan, astrofísico e autor de livros de ficção científica e vulgarização do conhecimento científico. Disponível na Netflix

3.

Nome no Brasil que teve a série de fantasia e ficção científica The Twilight Zone, criada por Rod Serling em 1960 e que durou até 1965

4.

Reinhart Koselleck no livro “Futuro passado

5.

ver também o Movimento Liberdade para Educar e o Professores contra o Escola Sem Partido, que se contrapõem a estes ataques à atividade docente

6.

O ESP geralmente fala “liberdade de aprender”, com o mesmo sentido do “direito de aprender”, e contrapõe a isso a “liberdade de ensinar”. Ver http://nfde.xyz/7po4

7.

Ela fala isso em seu livro A Condição Humana

 

http://www.sobrehistoria.blog.br/textos/os-perigos-da-aula-de-historia/ 




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